segunda-feira, 7 de junho de 2010

Nosso inimigo

Ultimamente ando tão acelerada que confundo datas, dias, textos e pessoas, então, na verdade, não tenho certeza de se já postei esta crônica. Se foi assim, terão de me desculpar, mas é que passar os dias -e faltam ainda dois!- montando coreografias com um bando de atores extremamente empolgados deixa qualquer um meio tonto... Mas está valendo a pena, pois mesmo sendo simples, as coreografias ficam muito bem no palco e todos estão realmente se esforçando para dançar o melhor possível... Sobretudo porque, talvez, este domingo meus dois chefes dêem o ar da sua graça no ensaio. Sei que ambos estão roendo os cotovelos de curiosidade, então é bom ter algo legal preparado para que sosseguem. Ainda falta a última coreografia (a mais difícil porque nela todos, bailarinos, atores e coral, estão envolvidos) e vou ter de arrumar uma outra que já estava pronta porque as bailarinas -todas clássicas até a medula- não estão conseguindo dar conta de executar um hip hop básico... Com certeza a coreógrafa vai ter um chilique quando lhe dizer que vamos ter de mudá-la, mas, sinceramente, se vocês vissem como essas meninas sofrem tentando requebrar e se soltar para dançar um hip hop elementar, fariam o mesmo. Sâo um completo desastre!... Ainda por cima -e ainda bem- ontem descobri que um dos meus novos alunos de teatro é um dançarino de hip hop de verdade, daqueles que fazem acrobacias no chão e tudo mais, então, decidi aproveitá-lo e melhorar esta peroformance (com certeza as bailarinas vão acender velas para mim e soltar rojões de pura felicidade) porque ela está derrubando o espetáculo. Não me importo com as caras féias ou os comentários, o que interessa é apresentar algo com qualidade, então, estou pronta para encarnar o papel de vilã convidada e eliminar quem quer que não esteja à altura.
E voltando à rotina -apesar das coreografias- aqui vai a crônica deste semana. Só espero não tê-la postado antes!... Bom, se for assim, vão poder curti-la duas vezes!
Passeando pela Rua das Flores em Curitiba ao entardecer... Nâo sei por que me sinto uma turista de novo, como se tivesse acabado de chegar no Brasil e estivesse adentrado num mundo desconhecido e exôtico, cheio de rostos, vozes e gestos que parecem absolutamente diferentes de tudo que conheci até hoje... O barulho vai diminuindo aos poucos, junto com a luz do sol. Até parece que estão executando algum tipo de dança juntos. Os faróis acendem com perfeita sincronia, primeiro vermelhos, depois alaranjados, finalmente dourados e ofuscantes. Tudo começa a tomar outro ritmo, a pulsação da cidade muda gradativa, sutilmente, como se uma outra personalidade fosse surgindo com as primeiras estrelas. As lojas vão fechando, há um quê de alívio, de dever cumprido no ar... Sento num banco, perto de uma fonte da qual só agora consigo distinguir claramente o som, e olho demoradamente em volta, absorvendo profundamente as novidades, o movimento, os rostos e vozes, os prédios antigos, os cheiros. Aqui não há pombas como na praça em frente ao teatro Guaíra, mas muita gente apressada e cansada que finalmente vai para casa jantar e assistir a novela...
É neste instante com ares meio irreais que aparecem as jovens criaturas, até então ocultas ou disfarçadas no meio do universo comercial que tomava conta do centro, e invadem ruidosamente o calçadão exibindo seus cabelos, piercings, roupas fashion, gírias e gestos meio dança, meio mímica. Sentada no meio deles feito um elemento mudo e imóvel da paisagem, invisível para eles, eu os observo, curiosa, perguntando-me de onde foi que apareceram, pois antes desta hora não notei a sua presença... O alívio no ar se trasforma rapidamente em agitação, o cenário à minha volta parece adentrar num outro universo, num outro tempo, num plano cheio de surpresas, de novas linguagem e vozes, de silenciosos e vorazes olhares e gestos sedutores e agressivos, desafiadores. A tribo dos jovens luta para chamar a atenção da cidade cansada e indiferente, para impor as suas regras sobre as secularmente estabelecidas pelos seus antepassados, para se fazer compreender, aceitar, para ocupar um lugar acima de todos os códigos e convenções... Mas é uma batalha perdida, pois o destino da juventude é, precisamente, este: lutar, se rebelar, transformar, desafiar, chamar a atenção, promover a reflexão, mas sem nunca obter uma vitória esmagadora. Na verdade, no instante em que conseguirem isto e abandonarem a rebeldia já não serão mais jovens e seu papel como desbravadores e inquiridores da sociedade terá findado. Ele ficará então para a próxima geração de jovens que, com idêntica força e idealismo, continuará esta guerra perdida que gerará -com suas inúmeras escaramuças- as mudanças necessárias para que a humanidade dê mais alguns passos em sua evolução.
No entanto, tem ainda uma outra tribo que começa a surgir ao mesmo tempo, tão imperceptivelmente quanto a primeira: a dos catadores de papel e seus enormes e esdrúxulos carros de mão. Animados e falantes, fazem a festa na porta dos depósitos e das lojas, que já deixam para eles o papelão, as latas e o plástico empilhados junto aos postes e muros. Curiosamente, eles não brigam nem se empurram, pois parece haver territórios de coleta claramente definidos para cada um, e enquanto trabalham dobrando, cortando e amontoando os papéis, caixas, garrafas, latas e barbantes, eu começo a perceber que sou a única a observá-los. Para os outros transeuntes, ensimesmados em seus próprios problemas, parecem assemelhar-se aos vampiros, cuja imagem não se reflete nos espelhos e deslizam pelo mundo dos vivos sem serem notados... Esta tribo, no entanto, tem uma presença bem sólida e real, possui a sua idiossincrasia, fala a sua língua, tem seu gestual, seus rituais, seu jeito peculiar de desafiar, de questionar, de pedir mudanças... A rua é praticamente tomada por eles e mesmo assim a cidade continua indiferente à sua presença!... Porém, o que me deixa espantada é que esta atitude é claramente recíproca. Parece que uns não existem para os outros. Me sinto feito um olho invasor que desconhece as regras deste jogo e por isso está quebrando-as todas. Realmente, neste instante me convenço de que sou mesmo uma turista, pois todos parecem entender e agir segundo uma dinâmica bem específica, menos eu. Os limites são incrivelmente claros e definidos e todos parecem respeitá-los de boa vontade, e isto faz com que não me sinta ameaçada, como já me aconteceu em outras cidades ao encontrar este tipo de personagens. Eu não sei por que aqui é diferente. Estas pessoas formam parte ativa e real da dinâmica desta cidade, mesmo se aparentemente ignorados, têm seu espaço e a sua atividade, participam, interferem, fazem as engranagens funcionarem com a sua presença tanto quanto os demais, e no entanto, não parecem importar-se ou revoltar-se com a indiferença deles. Mas, como pode ser? É alguma atitude tácita de auto-defesa de ambas as partes?... Realmente, funcionam como universos paralelos e, olhando para eles, posso sentir quão real é esta situação...
Então, enquanto permaneço sen tada no banco de madeira, rodeada por estas imagens desconcertantes e até perturbadoras, de repente começo a refletir sobre quantas pessoas ignoramos propositadamente ao longo das nossas vidas, apesar de esbarrar com elas todo dia. Por que as ignoramos? São repulsivas, têm alguma doença contagiosa, são perigosas, sujas, ignorantes, malcheirosas, ameaçadoras? Nos incomodam por quê? E o fato de nos incomodarem, as torna nossas inimigas?... Mas, quem é realmente nosso inimigo? Ele está fora ou dentro de nós? É real ou imaginário?... É somente nossa postura espiritual a que determina sob qual perspectiva enxergaremos nosso próximo, então, o que vemos ao olhar para ele? A feiúra, a pobreza, a doença, a mediocridade, a gordura, a vaidade, o fracasso, a ignorância? Ou será que vemos a nós mesmos e os nossos mais secretos medos, e receamos ser infectados por estas imagens externas, ou que estes males acordem dentro de nós diante destes espelhos e nos assolem, transformando-nos naqueles de quem fugimos? Afinal, lutamos tanto pelo sucesso e a aceitação! Sofremos tão imensamemnte com cada derrota e rejeição! Desejamos com tanta intensidade ser alguém, ter algo, ocupar um espaço só nosso na história!... Mas, por que não pensar diferente e, ao invés de temer-lhes, não nos perguntamos o que os nossos inimigos precisariam para serem felizes e se tornarem nossos amigos?... Com certeza descobriríamos que são as mesmas coisas que nós, e nós sabemos disso. Então, o que nos impede de dar a eles uma chance, umas migalhas dos nossos bens -materiais e espirituais- é tão somente a nossa falta de compaixão e de fé, porque simplesmente não acreditamos que merecem uma chance e que nós temos o poder de pô-la em seu caminho. Mas, não é "dando que se recebe"? Não é mesmo?... Porém, nós, apesar de saber disto, não acreditamos que seja nosso papel e sempre tememos não receber nada em troca. E os nossos bens mofam, trancados num quarto escuro no mais escondido dos nossos corações.

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