domingo, 10 de abril de 2011

Uma moeda a menos

E antes que comece a maratona de apresentações de Páscoa na semana que vem, vou aproveitar este fim de semana ensolarado para postar calmamente as minhas crônicas, porque sei que até quarta-feira que vem vai me sobrar bem pouco tempo e energia para fazê-lo como é devido... Ainda bem que é só uma semana! Depois virão outras empreitadas, mas estou trabalhando para não me estressar e pegar cada evento quando ele chegar e não antes, como costumo fazer- pois já andei perdendo algumas noites de sono preocupando-me com coisas que ainda vão demorar para acontecer, querendo solucionar todos os problemas imediatamente, sem mesmo saber se eles irão acontecer... Coisa de pessoa ansiosa e perfeccionista, sabem?... É que não estou nem um pouco a fim de levar outra bronca do meu chefe por deixar assuntos sem solução ou por não me envolver o suficiente. Um fiasco desse tipo é suficiente para aprender... Tudo bem que da primeira vez mereci, mas é tão desagradável que prefiro evitar passar por este engodo. Agora, se depois de fazer tudo que posso para que as coisas dêem certo, elas ainda não ficam do jeito que esperávamos... Paciência, pelo menos a minha consciência estará tranquila...
 Hoje tive uma manhã meio conturbada porque meu filho e a sua namorada vêm almoçar, então tive de caprichar no menu, o que me levou algo mais de tempo que o usual, pois meus pratos geralmente são super simples. Mas não me importo, vale a pena para agradar meu filho, a quem ando vendo muito pouco ultimamente... Fora isso, mesmo cozinhando mais do que de costume, ainda me sobrou este resto de manhã para postar as minhas crônicas, então... Vamos aproveitar, né?

    É hora de almoço e as ruas fervem, as pessoas saem das lojas e escritórios feito nuvens de gafanhotos famintos, animadas e sorridentes. O ar está cheio de aromas que brigam entre si para atrair os fregueses: feijão, bife, frango, macarrão, batata frita, costela assada, purê, arroz branco e fumegante, soltinho na bacia... Os inúmeros restaurantes da avenida principal abrem as suas portas e expõem seus balcões transbordantes e cheirosos e as suas mesas de toalhas xadrez através das janelas, enquanto atarefadas cozineiras de avental e toca se apressam com tigelas e bandejas da cozinha até o bufê, pois parece que a fome e a pressa dos fregueses não têm fim... Num destes restaurantes, que tem uma porta corrediça de vidro e uma enorme vitrine que tenta os transeuntes com a visão colorida do balcão de saladas e pratos quentes, o entra e sai é quase frenético. As mesas mal são liberadas quando já tem alguém sentando; as cozinheiras quase não têm tempo de retirar os pratos sujos e passar um pano úmido. Tem até gente em pé, perto do caixa, esperando com seus talheres, guardanapos e pratos vazios na mão, irrequietos na fila do bufê, com cara de quem começa a recear que a comida não vai durar até chegar a sua vez... O dono, desde seu trono particular atrás do caixa, contempla o quadro com olhos brilhantes e um enorme sorriso em seu rosto bochechudo e pálido enquanto dá o troco ou indica alguma mesa livre...
    Então, vindo ninguém sabe de onde, aparece este homenzinho, do tamanho de uma criança, trajando aquele enorme agasalho preto e seboso que quase chega até o chão, botinas descosturadas, cabelo oleoso e começando a mostrar algumas cãs, mãos sujas e de unhas compridas, pele marcada por cicatrizes e machucados que ainda não sararam, um suéter que jamais viu água e sabão, e uma calça amarrada com uma corda preta de graxa, e pára bem na porta do restaurante, encolhido e com os olhos compridos de fome, as mãos no ar como se quisesse apanhar aqueles cheiros celestiais e levá-los à boca... Os fregueses, com aquele ar de realeza escandalizada, começam a esbarrar com ele para entrar e o dono, vendo a irritãção deles, vira-se para o homenzinho e lhe cospe algumas palavras em tom áspero, acompanhadas de um gesto parecido com o que se faz para espantar um cachorro. Mas o homem pouco se mexe, posicionando-se num dos lados da porta. Os clientes passam por ele fazendo questão de não encostar na sua roupa imunda, e entram suspirando aliviados e bastante melindrados, fazendo comentários. Alguns dão uma olhada furtiva de desaprovação lá de dentro enquanto mastigam seus bifes ou enrolam o macarrão no garfo... O dono, impaciente e preocupado, fala de novo com o homem, mandando-o sair, e ele, obediente porém persistente, se afasta mais um pouco, saindo da porta, mas continua olhando para dentro, inclinando o corpo, pescoço esticado e ombros encolhidos, como para não perder um detalhe do banquete obsceno que acontece lá dentro. Curiosamente, nada responde e nada pede, só continua parado ali, feito um daqueles cachorros de rua que sentam junto das mesas da anchonete aguardando que, num descuido, alguém deixe cair uma migalha ou então, se comova e lhe ofereça um osso, um pedacinho de bife, uma batatinha meio queimada...
    Estremecida, contemplo aquele personagem de cima a baixo, em toda a sua miséria e humildade, e percebo quão terrivelmente consciente está da sua insignificância, quão grotescamente resignado ao seu nada e, por isso mesmo, convencido de que não merece abrir a boca e esmolar um pouco de arroz com feijão, não importa se as suas pernas fraquejam de fome ou seu estômago está feito um nó e as suas mãos tremem ao limpar a saliva que começa a escorrer da sua boca murcha e desdentada... Eu olho em volta e me pergunto, horrorizada: "Ninguém está vendo? Ninguém se compadece desta criatura? Ninguém é capaz de compartir o alimento? Não tem umas moedas a mais para pagar-lhe um almoço decente?... E o dono, não tem panelas transbordando de macarrão, frango ou arroz na cozinha? O negócio é mais importante do que aliviar a fome deste homem que quase desmaia à sua porta?... Do que ele tem medo? A notícia pode se espalhar e daqui a pouco vai ter uma fila de mendigos querendo aproveitar-se da sua boa vontade?"... Mas meu ônibus aparece naquele instante e eu preciso pegá-lo, então fico sem saber o final desta história triste... Através da janela empoeirada contemplo a silhueta pequena e encolhida do homenzinho , ainda em pé na calçada diante do restaurante, e penso que todos ali dentro -sobretudo o dono- perderam a chance de ganhar o dia fazendo uma boa ação. Uma moeda a menos no seu tesouro no céu.

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