segunda-feira, 6 de junho de 2011

O jardim do artista

Bom, Festa Junina e cia. se encarregaram de me manter absolutamente ocupada neste fim de semana -e no próximo também- então estou aproveitando esta segunda de manhã em que não teve reunião administrativa na fundação e, portanto, não precisei ir, para postar a crônica da semana passada. Na verdade, foi um fim de semana difícil, doído, que me deixou bastante arrasada porque todo o elenco do Musical decidiu abandonar o espetáculo e vamos ter de começar tudo de novo, porque os atores podem parar, mas o espetáculo não. Existe um compromisso político-cultural que não pode ser quebrado, então o Musical continua, mesmo que tenhamos que abrir testes para novos intérpretes e voltar àqueles horários impiedosos de montagem e ensaios para tentar voltar ao palco lá por setembro -coisa que eu duvido muito. Para mim, deveríamos parar até o ano que vem, pois assim teríamos mais tempo e calma para remontar um espetáculo de qualidade, com um elenco adulto e mais comprometido, com uma maior disponibilidade. Não quero escolher pessoas sob pressão, só porque não tem outra melhor, isso não dá certo... Lamento profundamente ter perdido -e vocês sabem como sou ruim para lidar com perdas- todo esse pessoal maravilhoso e competente, mas não posso me prender indefinidamente a eles e seu talento único, preciso ir em frente e fazer as coisas funcionarem. Ainda bem que alguns deles continúam como meus alunos no curso, então a separação não é tão cruel assim. Mas como já escrevi em meu diário, preciso parar de fazer projetos a longo prazo com eles, não importa quão talentosos, dedicados e eficientes eles sejam, nem quantas vezes jurem que vão continuar  aqui por mais um ano. A coisa não acontece assim na vida real porque eles são jovens demais, estão sob o poder dos pais, da escola, dos sub-empregos, da faculdade e os cursos profissionalizantes, então, é impossível contar indefinidamente com eles. O teatro não é a sua prioridade, não é a sua profissão, como é para mim, têm outros projetos e a vida toda pela frente. Isto é algo com o qual preciso me acostumar (e meu chefe também!) caso contário, este tipo de crise chata e estressante vai se repetir indefinidamente, fazendo todos sofrer à toa... E para que procurar mais sofrimento além da nossa quota necessária?...
    Bom, e depois deste desabafo, aqui vai a crônica da semana:


    Eu acho que o homem tem algum tipo de problema mental, porque todas as vezes que passo diante da casa ele está acocorado nos degraus do alpendre, ou na calçada junto do portãozinho, com aquele olhar perdido, às vezes falando sozinho ou balançando para trás e para frente enquanto segura um pedacinho de madeira, um lenço ou uma folha de papel amassada que ele alisa sem cesar. Encolhido ali, ele parece contemplar o mundo que corre à sua volta com uma espécie de condescendência destemida, e se alguém o  olhar nos olhos, ele imediatamente cumprimenta com uma voz surpreendentemente forte, mesmo  que não conheça o transeunte. Na parede da frente da casa, onde está a janela do quarto, ele pendurou um broto de orquídea dentro de uma metade de garrafa  pet, e a ele dedica bastante tempo podando, aguando e ajeitando, certificando-se toda vez se o prego que segura a garrafa está firme na parede... É um homem de uns quarenta anos, moreno, forte, de cabelos ralos e olhos escuros, que mora sozinho naquela casa e parece se entreter construindo formas e esculturas com aquela pilha de pneus de trator que tem no quintal de terra, porque a cada certo tempo, quando passo em frente à casa, o desenho ou a disposição dos pneus mudou: um dia estão em linha, como se fossem um trem; noutro formam um círculo, noutro parecem uma torre, às vezes lembram um bicho, uma pessoa... Acredito que é a forma que ele achou de passar o tempo e usar a sua mente em algo produtivo. Às vezes o vejo saindo da casa - em cujo portão construiu uma engenhoca com cabos de plástico e uma grade de geladeira que ainda não sei se é enfeite ou se possui alguma utilidade de fato- com alguns cabides de roupa, que leva até a casa vizinha. Suponho que algum parente mora ali e ele leva a roupa para lavar e passar. O quintal da sua casa está sempre limpo, pois ele passou vários dias roçando o mato e tirando a sujeira amontoafa para assim poder usá-lo como uma espécie de "tela" ou oficina para a elaboração dos seus projetos criativos. Acredito que definiu este propósito assim que se mudou, pois poucos dias depois, mesmo com o pessoal ainda trazendo camas e cadeiras, ele já estava sob o sol, com um boné azul e uma enxada meio torta, brigando com o mato e os tocos de árvore, empurrando uma carriolinha pela terra seca e catando latas, papéis, sacolas de plástico e pedaços de pau que estavam espalhados por ali. Parecia quase obcecado, nada lhe importava a não ser se desfazer de todo o entulho o mais de pressa possível. Cheguei a ver uma mulher gritar com ele da janela da cozinha para que parasse um pouco e entrasse para comer alguma coisa. Ele sorriu e acenou com a mão suja, murmurando alguma coisa, e a mulher assomou o torso pela janela, estendendo-lhe um prato fumegante. Ele o pegou e, sem largar a enxada, sentou num toco e devorou a comida em poucos momentos, retornando em seguida à sua missão... Numa semana ou algo mais o quintal estava limpo: restou só a terra e um caminho de pedras -com o qual ele também faz seus trabalhos- e aquela coleção de penus de trator junto do muro lateral. Sobraram algumas jabuticabeiras e bananeiras no fundo, mas elas não pareciam incomodá-lo, ao contrário, talvez com um senso inconsciente de estética, ele as deixou ali para servirem de fundo às suas obras, para botar-lhes algo de cor.
    Não parece ter noção de muita coisa, a não ser de que as suas obras precisam ser periodicamente transformadas, mudadas de lugar, recicladas; precisam dizer sempre algo novo, contar uma outra experiência, mostrar uma faceta diferente dele, talvez uma forma que revele algo sobre a sua mente, que lhe abra o espírito para os mistérios que seu cérebro guarda e que nem ele mesmo consegue desvendar. Talvez esteja convencido de que as respostas que precisa estão no constante movimento dos elementos e das formas, no encontro da terra com as pedras, das folhas de bananeira e a borracha preta dos pneus... Ou talvez sejamos nós que não conseguimos entender a sua linguagem e o deixamos a se perguntar por que o resto do mundo não percebe o que está tentando dizer.

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