sábado, 15 de novembro de 2008

Sábios, reis, artistas, evangelizadores.

Toda vez que posto uma nova crônica gosto de começar contando algo sobre meu dia-a-dia, assim os leitores podem me conhecer mais um pouco e talvez até se identificar com as minhas peripécias e sentimentos. Hoje, porém, havia decidido não escrever nada e publicar só a crônica -não só porque o pc se dedicou a me sabotar a manhã inteira com um letreirinho de "depuração" que apagava tudo que tinha escrito- mas porque não estava lá aquelas coisas de animada. Ontem fui num aniversário e, ao invés de desfrutar da festa e da companhia de pessoas queridas e agradáveis, fiquei quieta e isolada num dos bancos de granito do jardim do prédio, sentindo raiva e frustração por uma situação que não tem solução, e pena de mim mesma -detesto quando sou assaltada por estas crises de auto-compaixão, mas ainda bem que duram pouco- por ter de passar por ela imune, coisa que já deveria ter aprendido, já que ela se alastra por três anos sem nenhum indício, nem sequer microscópico, de mudança ou melhora... Mas, como tudo na vida passa, hoje já acordei contente, dancei a música do radio despertador, conversei com meus velhos cachorros aleijados, respirei fundo o ar fresco e cheio de novos perfumes da manhã, liguei para a minha filha, dei uma boa olhada ao meu redor e me senti novamente disposta e confiante para continuar com as minhas batalhas -grandes e pequenas- para correr atrás de vitórias e não de derrotas ou lamúrias e persistir na paciência, o otimismo e a criatividade para lidar com aquelas situações que não têm saída, pois como bem dizem os árabes: "Se tem solução, para que se preocupar? E se não tem, para que se prpeocupar?"... E, claro, estão absolutamente certos. Nâo vou desperdiçar meu tempo, a minha energia e a minha inspiração neste tipo de coisa quando tem tanta coisa boa ao meu redor! Se olhar para a balança dos prós e dos contras, sem dúvida há uma coisa negativa enchendo um dos pratos, porém, em compensação, no outro as coisas positivas estão caindo pelas tabelas e não posso ser ingrata com Deus ao ponto de desprezar ou esquecer todas elas para me ocupar somente daquela outra que às vezes machuca meu pé, feito um pedregulho que se mexe para lá e para acá, segundo caminho... O negócio então, é continuar andando, sempre para a frente, sempre de olhos e coração bem abertos para não perder nenhum dos milagres que acontecem ao nosso lado para animar-nos, ensinar-nos e fazer-nos crescer.
E aqui vai a crônica de hoje:
A caminho do trabalho hoje de manhã, enquanto tentava fazer um planejamento das minhas atividades na Fundação, encontrei uma mendiga carregando um grande saco de juta cheio de latas vazias e garrafas plásticas -mulher negra, gorda, de cabelos pretos e andar desengonçado- que passou por mim cantarolando. Usava uma camiseta velha e esburacada enrolada na cabeça, vestido largo demais, mesmo para seu corpo rechonchudo, de um tecido mole e surrado, que já tivera estampa florida, todo remendado e sem sor definida, e chinelos gastos -um de cada cor- nos pés de calcanhares rachados e deformados... Primeiro, escutei a sua voz surpreendentemente melodiosa e afinada vindo por trás. Em seguida, senti a vibração poderosa do seu corpanzil se aproximando junto com a música, e logo ela passou por mim, batendo de leve em meu ombro e na minha sacola com seu saco de latinhas e garrafas. Caminhava animadamente, de cabeça erguida e olhos atentos, apesar da evidente dificuldade que o excesso de peso lhe ocasionava, e eu não pude evitar ficar observando-a enquanto se afastava de mim, admirada pelo seu bom humor apesar do seu aspecto miserável e da prpomessa de chuva e frio que pairava sobre nós... Me mantive a uma certa distância atrás dela, o que me permitiu perceber que mancava, fazendo com que as suas costas entortassem perigosamente para a esquerda a cada passada. No entanto, nada na sua atitude demonstrava dor ou aborrecimento, cansaço ou tristeza... De repente, no mei do quarteirão, encontramos uma mulher que vinha com seu saquinho de pão quente e cheiroso saindo da padaria da esquina. De longe, ela olhou para a mendiga e deimproviso abriu um sorriso largo e luminoso e veio tortreando cumprimentá-la como se se tratasse de uma velha amiga que não via fazia muito tempo. Mantendo aquele sorriso cálido e terno e sem se acanhar pelo aspecto da outra, perguntou-lhe pela família, pela saúde, pela vida, e a mendiga respondeu a tudo com a maior naturalidade e, por sua vez, perguntou à mulher pela vida dela, pelo esposo doente e a carreira dos filhos. A mulher fez um suscinto relatório e ambas se despediram com um beijo, continuando em seguida seu caminho sem que a mulher fizesse -para meu desconcerto- nem o esboço de lhe oferecer um ou dois pãezinhos dos que carregava e que despediam um aroma de dar água na boca. E a minha mendiga tampouco fez questão de pedir nem sequer indiretamente... Eu, espantada diante de tal cena, decidi ficar por perto para ver o final desta história, nem que por causa disto chegasse atrasada ao trabalho!.
Mais adiante -eu no encalço da mendiga fazendo de conta que lia calmamente alguma coisa muito importante em minha agenda e fazia anotações igualmente importantes- um senhor de botas e chapéu de feltro parou para cumprimentá-la também, e depois mais duas mulheres e ainda mais uma, que estava indo deixar a filhinha na escola... Minha surpresa e fascinação cresciam a cada um destes inesperados encontros, pois normalmente, todos prefeririam manter-se a distância de alguém como ela, no entanto. Esta mendiga -da qual eu me afastaria discretamemnte se cruzasse com ela na rua pelo seu aspecto sujo e meio grotesco- era conhecida de todo mundo!... Mas, quem diria? Como isso era possível? Afinal, quem era ela para ser tão popular assim?... Então, comecei a me perguntar qual seria a sua história, pois com certeza devia ser bem incomum. Nâo pude deixar de notar que a sua fala era até polida e muito clara, usava as palavras corretamente e a sua pronúncia era como a de alguém que cursou a escola. Seus modos eram afáveis e anacronicamente suaves para alguém com seu tamanho e aspecto. Porém, o mais desconcertante para mim era o fato de que ela parecia conhecer todo mundo intimamente e que isto era recíproco da parte dos que cruzavam com ela... Será que ela já fora vizinha deles? Da mesma igreja? Os filhos estudaram na mesma escola? Freqüentaram as mesmas lojas e mercados, trocaram receitas e confidências no portão ao entardecer ou enquanto esfregavam a calçada?... E qual foi a desgraça absurda e impiedosa que jogou esta mulher na rua para acabar recolhendo latas e garrafas no lixo? No lixo daqueles que, ao parecer, foram seus conhecidos... Mas que ironia cruel... No entanto, e por alguma razão que não cheguei a descobrir, ela não se mostrava infeliz, envergonhada ou revoltada com a sua sorte, pela sua atual posição diante deles, que tinham prosperado e criado família e raizes. Muito pelo contrário, sorria e conversava com todos com a maior naturalidade e sincera alegria, e eles -como se tivessem algum acordo tácito e inviolável- tampouco pareciam sentir-se incomodados ou com pena por causa da sua miséria... O que fez com que eu cogitasse, incrêdula: "Será, então, que foi uma escolha dela e não uma imposição do destino?" Mas, por quê? Qual seria seu propósito? Poderia alguém, sobretudo nestes tempos de ambição e egoismo, escolher por livre e espontánea vontade a rua, a pobreza, a necessidade, e sentir-se feliz com isso?... Instintivamente, veio à minha cabeça a imagem de Francisco de Assis e seus pripmeiros irmãos, que largaram fortouna e família para dedicar-se à probreza evangelizadora e à pacificação... Então, será que eu estava diante de alguém assim? Uma santa, talvez?...
Nesse instante, a mendiga virou a esquina e se afastou alegremente rua acima, balançando seu barulhento saco enquanto eu pensava no quanto ela teria para me ensinar se eu tivesse a coragem, o tempo e a disposição para desviar ou deter meu caminho por algúm tempo e escutá-la. E tive certeza de que seria muita coisa... Mas eu estava em cima d a hora para o trabalho e desta forma deixei passar meu encontro com ela, talvez marcado há muito tempo pelo sábio destino. Bater o cartão, naquela manhã, pesou mais do que aprender o que a vida me reservara para aquele dia.
Há um sábio dentro de cada um de nós, nas mais diferentes áreas, que está sempre pronto para nos ensinar, não importa onde nem quando, se com ações ou palavras, se bem vestido e culto ou em farrapos e usando os tempos verbais errado. Dentro de cada um há um sábio, um rei, um artista, um evangelizador, um professor, e, r esumo, um ser humano com todas as suas qualidades e que não podemos desprezar ou marginalizar pelo fato de não ser parecido conosco, de não ser do "nosso nivel", de não falar corretamemnte ou por ser simples e desajeitado. Nunca se deve perder a chance que o destino coloca diante de nós em cada um destes encontros -às vezes desconcertantes, às vezes surpreendentes, às vezes milagrosos- pois nada sabemos sobre o caminho que cada um percorreu até este encontro, sobre as suas opções, seus dilemas e reflexões, sobre as suas descobertas e conclusões, e tudo isto pode ser uma lição capaz de clarear nossos próprios caminhos. Assim como os outros nada sabem sobre nós e por isso mesmo não queremos que nos julguem só pelas aparências, assim nós tampouco podemos julgar ou descartar quem não conhecemos. Um ser humano é um universo e não podemos rotulá-lo até conhecê-lo por inteiro, fato que é quase impossível, já que ele está sempre em transformação, o que faz com que, na verdade, ninguém possa ser rotulado. Hà que estar sempre aberto aos encontros, aos olhares, aos gestos, às palavras que vêm dos outros, sem nos deixar impressionar pela forma, pois esta é a melhor forma de aprender e crescer.
Julgar e condenar por antecipação é uma tremenda falta de caridade e não faz mais do que pôr em evidência a nossa enorme vaidade e presunção.

2 comentários:

D Z disse...

Olá Paz,

Mais uma crônica espetacular...

Que costume feio temos de julgar as pessoas apenas pela aparência, não é mesmo? Nem sequer damos a chance de que mostrem quem verdadeiramente são...

Uma ótima noite para vc...

Bjs!

Dany Ziroldo

Paz Aldunate - Palavras disse...

Minha cara Dany:
Gostaria mesmo de ter muitos leitores fiéis que nem você, que realmente se sentissem tocados de alguma forma pelos meus textos, já que essa é a idéia... Bom, e talvez tenha, só que eles não escrevem comentários, né?...
Um abraço e mais uma vez obrigado pela sua fidelidade.
Beijão! PAZ